Murilo Queiroz
Publicado originalmente no Plano-B (GRUDE/UFMG), em 2002
Eu nunca pensei que 16 KBytes fossem capazes de me deixar tão feliz.
São 3:00 AM aqui em Paris. Acabei de chegar em casa; hoje (tecnicamente "ontem") fomos ao nosso boteco preferido (o Hurling Pub, perto do Pantheon, em Saint-Michel), para tomar cerveja (Guiness e Hoegaarden), em comemoração ao término dessa semana miserável (detalhes a respeito uma outra hora). Por incrível que pareça, com a gente foi o Yves (que, ao contrário do francês médio, não negou fogo e quase conseguiu nos acompanhar na cerveja e caipirinha).
Cheguei em casa meio tonto, sem muita vontade de ir dormir, e resolvi checar os meus e-mails antes. Passeando por um site de emuladores descobri que o jogo "Airwolf", da Ocean, nunca havia sido lançado para Spectrum (o nosso TK-90X). Tive um acesso de nostalgia: no Brasil, "Airwolf" é "Águia de Fogo", aquele seriado incrivelmente legal sobre Stringfellow Hawk, o melhor piloto de helicópteros do mundo, que, sob o comando do Arcanjo, pilotava o helicóptero mais poderoso dos anos 80 (o Trovão Azul era para maricas).
Não resisti e fui atrás da trilha sonora do seriado. A música, que sabia de cor, despertou-me uma série de boas lembranças (algumas não muito boas, por exemplo aquelas de como eu detestava ir à missa das 7:00PM de domingo, bem no horário do programa). Eu não era capaz de imaginar uma madrugada mais geek (uma madrugada MELHOR é fácil: basta acrescentar a doce-e-sempre-bela Cyntia e agitar-antes-de-abrir). Era impossível prever o que estava por acontecer.
Lendo os meus e-mails recebi a notícia fatídica. Alguém (especificamente o Ricardo Pontual) finalmente conseguiu um arquivo de "Em Busca dos Tesouros". Quase fico maluco quando leio o subject.
É preciso explicar a importância da descoberta. Comecemos do princípio, portanto: o ano era 1986. Eu tinha 9 anos, e minha única preocupação política era a maldita reserva de mercado brasileira. A idéia era simples: era proibido importar computadores e software para o Brasil, porque isso iria fortalecer a indústria nacional. O que eu via mesmo era nossa indústria copiar, descaradamente, o projeto dos outros, e o governo impedir, de qualquer jeito, toda e qualquer tentativa de se obter o que era realmente divertido naqueles tempos.
Naquela época, a única potência em microinformática que eu conhecia era a Microdigital. Eles vendiam, por aqui, clones dos microcomputadores projetados pelo inglês Sir Clive Sinclair. No final de 1985 meus pais (e meu irmão mais velho) voltaram de Belo Horizonte (a "capital") trazendo na bagagem um desses projetos alternativos, o TK-85 (algo com a aparência externa de um ZX-Spectrum e a arquitetura de um ZX-81, ambos sucessos absolutos de vendas na Inglaterra). Até onde sei foi o primeiro computador de São Francisco, a minúscula cidade do interior de Minas Gerais onde cresci.
Durante anos eu disputei com meu irmão mais velho "quem sabia mais de computação". Eventualmente, ele desistiu do combate (apesar de eu achar, até hoje, que ele tinha um sério potencial). Por mais saudade que eu sinta daquela época, é preciso confessar que eram tempos terríveis para um geek em estágio embrionário: São Francisco não tinha sequer banca de revistas (o que me obrigava a procurar desesperadamente por fascículos de "INPUT" todas as vezes que ia a Montes Claros, a aglomeração urbana mais próxima).
Em 1987 (na verdade desde muito antes) o estado-da-arte em computação (pelo menos a parte compreensível por um moleque da quarta série) era publicado na Micro Sistemas, "a primeira revista brasileira de microcomputadores". Para mim a única forma de conseguir um exemplar era através de um assinatura, que por sinal encabeça a lista das coisas mais frustrantes que conheço. A MS aparecia na minha caixa postal quando bem entendia: às vezes todo mês, freqüentemente a cada semestre.
De qualquer forma, uma Micro Sistemas nova deixava-me feliz e orgulhoso, envaidecido mesmo (como dizia o Stanislaw Ponte Preta) por semanas. Um anúncio, entretando, deixou-me mais excitado do que de costume. Alguém havia desenvolvido um jogo, nacional, melhor do que qualquer coisa que eu já havia visto, para o meu (perdoem-me a expressão) fodido TK-85. Era um clone do "Pitfall", sucesso absoluto do Atari.
O anúncio, de página inteira, era de encher os olhos. "Em Busca dos Tesouros" era muito, muito legal. E tinha sido feito por um brasileiro, aluno de eletrotécnica no Rio Grande do Norte. Do alto dos meus nove anos, entretanto, conseguir uma cópia era, basicamente, impossível: eu nunca ia conseguir convencer ninguém a enviar um vale-postal de sei lá, 5 dólares, em troca de algo tão abstrato quanto um "programa de computador".
Passam-se, então, quinze anos. Nesse meio tempo, eu me vou embora de São Francisco (o que causou, no início, uma enorme satisfação, e que hoje, por incrível que pareça, é motivo de alguma saudade), entro numa roubada ou outra e acabo terminando o bendito curso de Ciência da Computação. Algum tempo depois, vejo-me em morando em Paris, e passeando na Inglaterra, depois de apresentar um artigo, "nas coxas", em uma conferência em Sheffield. Lá, no Museu de Ciências de Londres, sinto uma pontada de nostalgia, quando vejo, dentro da redoma de vidro, os computadores que tinham uma vez sido os meus sonhos de consumo (e que hoje são, merecidamente, peças de museu: o protótipo do Apple I, o ZX-80, e por aí vai).
Foi então que, de súbito, surgiu de volta a imagem do bendito "Em Busca dos Tesouros". Sei lá porque me lembrei dele; talvez porque tenha sido o primeiro jogo de computador que tenha me impressionado. Voltei a Paris obcecado pelo software. Escrevi para Deus-e-todo-mundo, perguntando se alguém tinha uma cópia. Sugeriram-me um grupo de colecionadores, cuja lista, a canal3, era referência no assunto. Minha frustração só aumentou quando descobri que o pessoal de lá também estava procurando pelo mesmo programa, e que não tinham conseguido nada significativo ainda.
Durante uma semana, eu fiz de tudo para encontrar o bendito "Em Busca dos Tesouros". Escrevi para o Renato Degiovani (que foi editor da Micro Sistemas por um bom tempo) e para todo mundo da editora cujo nome eu me lembrava. Pedi a lista de ex-alunos do CEFET-RN (onde o autor havia estudado)... Tudo foi inútil. A única referência, fornecida por um membro da Canal 3, era um endereço, aparentemente incorreto, do autor. Resolvi que ia mandar uma carta pra lá mesmo assim, quando fosse ao Brasil.
Quando finalmente admiti que a busca seria infrutífera, surpreendentemente, ao som da trilha sonora de "Águia de Fogo", li o e-mail contendo o link para o jogo. Confesso que fiquei ansioso, suando frio (talvez fosse culpa da quantidade absurda de cerveja consumida horas antes). Não podia imaginar que, quinze anos depois, eu ia (finalmente) poder jogar o "Em Busca dos Tesouros".
Com alguma reverência, instalei e executei o emulador que iria me permitir ver o bendito programa funcionando (meu TK-85 está há muito perdido em algum lugar na casa da minha avó em Montes Claros; prometo que vou ressucitá-lo, qualquer dia desses).
A sensação obtida foi uma das mais estranhas que eu poderia imaginar. Não era saudade ou nostalgia, pois afinal de contas era a primeira vez que via o jogo funcionando. Também não era mera curiosidade "arqueológica". Era como se eu recuperasse alguma coisa, como se eu fosse novamente um moleque de nove anos descobrindo o que se podia fazer com um "computador".
"Que tempo bom, que não volta nunca mais". Que saudade fodida. Fodam-se o meu Playstation 2, o meu Game Boy Advance com Afterburner e Flash Advance, e o meu notebook. Foda-se até o telefone, para falar a verdade. Até amanhã de manhã, eu vou ter nove anos de novo, para jogar "Em Busca dos Tesouros" e para me imaginar com uma "Águia de Fogo" guardadinha na garagem.
muriloq - muriloq@gmail.com
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