Oi!
Fui retificar uma única palavra num artigo da Forbes Brasil e acabei
participando de uma situação-símbolo do jornalismo nacional. Ao tratar do
GameCube, poderoso console da Nintendo, a revista tentou dar o
reconhecimento devido a um dos raros setores de tecnologia digital que tem
escapado da crise e atraído um público crescente e diversificado. Na
prática, estacionou no tempo do Atari 2600, quando os jogadores,
provavelmente inspirados nos computadores populares da época, tratavam os
cartuchos por "fitas de videogame". E, pior, a redação da Forbes não tem a
menor vergonha disso.
Eis a minha mensagem, na versão original (os parágrafos publicados na seção
de cartas são precedidos de asteriscos):
<abre aspas>
* Primeiro, parabéns pelo excelente trabalho!
* Necessário retificar o artigo "Cubo Mágico" (Forbes Brasil, 30 de agosto
de 2002, página 37) no que se refere às "fitas de videogame".
* Os jogos do GameCube vêm gravados em discos óticos -- mais
especificamente, mini-DVDs.
* Para os devidos esclarecimentos: não apenas o GameCube, mas nenhum outro
sistema de videogames (não incluindo computadores) de primeira linha jamais
usou fitas em sua configuração básica.
Por muito tempo os videogames de mesa usaram ROMs intercambiáveis em
cartuchos (que não continham fita nenhuma).
Alguns sistemas dos anos 80, como o bem-sucedido Atari 2600, aceitavam um
acessório que permitia o carregamento de jogos gravados em fitas cassete.
Mas esse acessório, fornecido por terceiros, não fazia parte videogame
básico e nunca atingiu uma popularidade notável. E é altamente improvável
que seja implementado algo semelhante no GameCube: os arquivos dos jogos
contemporâneos são infinitamente maiores do que uma fita cassete pode
comportar.
* Fui um dos criadores do Fliperama (www.fliperama.com.br), o canal oficial
de jogos do iG. Quando precisarem de consultoria sobre videogames, não
hesitem em entrar em contato.
<fecha aspas>
O último parágrafo, como se pode notar, era destinado direta e
exclusivamente à redação. Não que fosse uma vergonha revelá-lo ao leitor,
muito pelo contrário, mas quem se importa com esses detalhes na pressa do
fechamento da edição? Eis a resposta da Forbes:
<abre aspas>
NR: Apesar de os novos videogames usarem CDs e DVDs, preferimos chamá-los
de fitas, como o fazem a maioria de seus usuários no país.
<fecha aspas>
Só fiquei sabendo hoje, pois a revista chega aos assinantes desta roça --
que nem é tão fora de rota assim -- com treze dias de atraso; como a Forbes
não tem conteudo nenhum na Web, não há alternativa. A moça do telemarketing
não entende por que não quero renovar a assinatura. Falando como um robô e
incapaz de interpretar um mundo maior que sua vizinhança, a moça não estava
programada para lidar com um abacaxi desses.
Mas a redação também não está isenta de problemas de programação errada.
Aponto uma palavrinha mal empregada, e a resposta vem com a nonchalance de
um Casseta & Planeta confrontado com a denúncia de que Seu Creysson fala
errado. Segundo o mesmo critério, pode-se escrever à vontade "seje" ou
"esteje", pois é assim que a maioria dos brasileiros fala. Ou, considerando
a proliferação dos bate-papos pela Web, oficializar as abreviações "vc" e
"pq": o internauta as escreve e compreende, e se alguém criticar a má
escrita, ainda manda calar a boca.
É compreensível que a redação se esforce para produzir matérias cuja
linguagem alcance o maior número de leitores. Incompreensível é produzir um
artigo que, tomado pelo valor de face, induza à conclusão errada de que a
Nintendo promoveu um retrocesso técnico brutal ao fazer seu hipterturbinado
GameCube aceitar jogos em fitas.
Das, duas, uma: ou a autora do artigo mencionou as "fitas" por não saber
exatamente do que se tratava, ou acreditava ter um bom motivo para omitir
que sabia que as "fitas" eram discos -- uma distinção pré-escolar entre
objetos essencialmente diferentes. Em vez de ater-se aos fatos, preferiu a
confortável associação à uma ignorância generalizada.
Saudades de quanto Marcio Ehrlich editava a coluna "Video Guia" (uma
verdadeira escola de videogame em meados dos anos 80) e denunciava a gafe da
"fita de videogame" como efeito do baixo conhecimento técnico do usuário
brasileiro, mas zelava pelo emprego dos termos corretos nos artigos. A que
ponto chegamos. É claro que o caso da Forbes não é isolado: hoje o
nivelamento por baixo é uma religião jornalística. O medo de destacar-se,
numa palavrinha que seja, de uma idealizada mentalidade "coletiva" se tornou
matéria de aprovação nas escolas e regra não-escrita dos manuais de redação.
[]s
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P a u l o C . B a r r e t o
barreto_at_p...
http://pcbarreto.blogspot.com
Recebida em Thu 03 Oct 2002 - 23:05:45 BRT